Os meus não dias (ou texto da não inspiração)
Levantei. Há tempos não levantava desse jeito. Nesses dias sou detalhista. Percebo que levanto todos os dias colocando o mesmo pé pra fora dos lençóis. Estou com o mesmo não pijama, o mesmo moleton velho e desajeitado desfigurando meu corpo. Olho no espelho e vejo os mesmos olhos verdes baixo a uma sombrancelha desarranjada e bochechas vermelhas pelo contato com o travesseiro. Os fios de cabelo parecem estar fora do lugar exatamente como ontem de manhã, um deles sempre está emaranhado nas tais sombrancelhas, atrapalhando minha visão e a ponta irritantemente encostando na ponta de meu nariz alérgico. Assim mesmo, igual.
Nesses dias o dia é longo e a vida curta. Saio pra rua com a certeza de que qualquer tentativa de qualquer atividade será inválida e inútil. E é. Não consigo fazer nem as coisas mais banais e no meio da devolução da compra do supermercado que já deu errado tenho crises de desespero pelo número de pessoas iguais em minha volta e volto correndo pra casa deixando o carrinho e as compras no meio do supermercado. Me parece óbvio que volto pelo mesmo caminho da mesma calçada de mesmas lojas.
Minha cama está igual e me deito com vontade de dormir e acordar de novo pra ver se dessa vez o mundo mudou. Esperança tola e vã, vocês bem sabem. Acordo com preguiça. Preguiça do mundo. Preguiça das gentes do mundo. Acordo com preguiça de ser. Que é o pior tipo de preguiça porque contra a existência só há um remédio, que custa muito para tomar por um dia. Enfim acordo com preguiça de ser . E como não ser é impossível (porque qualquer negativa depende de sua afirmativa pra existir) tento ficar em clausura, me lembrando que em clausura eu existo só pra mim e não sou pra muita gente.
Durmo e acordo. Parece que hoje é domingo. E o sentimento que costuma se esvair na manhã seguinte não foi. Então hoje ainda parece sábado. E sábado foi um não dia de alguém que não foi. Resolvo continuar não sendo em meu quarto. E aqui fico, deixando de existir pro mundo e buscando uma única pílula vermelha que seja de não realidade. Porque nesses dias me lembro que o mundo não é mais surpreendente, que qualquer coisa passa por mim como passaram as outras e que encher os olhos não é encher a alma. Não adianta sair de casa porque a melancolia dos não dias transforma tudo em não lugares, não pessoas, não sensações, não sentimentos. Esforço a memória e me lembro que o mundo só me encanta quando o vejo sem os óculos das gentes. Tento tirar os meus, mas em dias de preguiça do mundo, não há lente que saia de perto dos meus olhos. E vejo o mundo como as gentes e pronto.Ou as não gentes, ou o não mundo...
Então me deito de novo, na certeza dos otimistas tolos que amanhã acordo sem óculos e o mundo acorda com graça. Acordo sem preguiça de você e quem sabe até sem preguiça de mim.
2 comentários:
Bateria palmas, bonita, se...
vi q vc tá lendo desobediência civil,
este é um dos livros que mais me marcou na facul.
bom proveito.
beijos
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